segunda-feira, 10 de julho de 2017

As Aventuras de Anamar | 2


Anamar gostava de paragens de autocarro. Não gostava de andar de autocarro, provocava-lhe enjoos e o cheiro a bancos gastos e vidas várias ficava-lhe entranhado na roupa e no cabelo. Mas gostava de se sentar nas paragens de autocarro. Não raras vezes, quando o despertador tocava e lhe faltava inspiração para escrever mais uma página daquilo que, um dia, num futuro longínquo, seria um livro, vestia a sua saia aos folhos, a camisa branca com gola redonda, calçava os sapatos encarnados, guardava metade dos sonhos na [eterna] malinha amarela, não esquecia o batom vermelho nem os óculos de sol redondos e lá ia sentar-se na paragem de autocarro do costume. De vez em quando, parava pelo caminho para comprar pipocas ao senhor que as vendia perto do banco de jardim. E ali ficava, a manhã toda, ou o dia todo, a ver as pessoas que ao seu lado se sentavam enquanto esperavam pelo transporte que as levaria, por certo, para um sítio melhor. Anamar gostava de imaginar o destino dessa pessoas, se seria longe ou perto, preto ou cor-de-rosa, recheado de sonhos ou isento de vida. Gostava de olhar para dentro dos autocarros que passavam e tentar ler o olhar dos passageiros com a cara colada no vidro e o coração bem longe dali. Tentava encontrar estórias nas rugas e na pele cansada de quem já muito viveu. Tentava encontrar esperança nos risos rasgados de quem ainda não aprendeu a viver. De quanto em vez, sentavam-se a seu lado casais de namorados de mãos dadas e sorriso frouxo, palavras doces e olhares de mel, fazendo juras de amor em silêncio e prometendo um amanhã incerto. Anamar comovia-se com o amor alheio. Fazia-lhe lembrar o amor que vislumbrara de perto.

Certo dia, um dia morno de Julho, Anamar viu-o chegar. Sentou-se ao seu lado e o coração, outrora quieto, disparou. Era tão bonito, de uma beleza que ultrapassava os limites de físico e se dissuadia na aura luminosa e colorida, qual arco-íris em dias de chuva e sol. Anamar tentou conter o sorriso que lhe crescia na alma. Ajeitou os óculos de sol, com aquele jeito muito próprio de quem quer esconder o que sente. Abriu e fechou a malinha amarela, somente para confirmar se a metade dos seus sonhos ainda lá permanecia. Cruzou a perna e reparou no arranhão que maculava o seu sapato direito. Voltou a olhar para ele e ele retribui-lhe o olhar. E nessa dança entre a vergonha e o querer, passaram sete minutos e meio, os sete minutos e meio mais longos e curtos dos últimos curtos e longos meses da sua vida. O autocarro chegou, e ele levantou-se. A porta abriu e ele perguntou "Para onde vai?". "Este aqui vai para o Vale dos Sonhos, e é melhor aproveitar a viagem pois não sei quando cá voltarei a passar", respondeu o senhor condutor, que tinha ar de quem sabe o que diz. Então, num rasgo de coragem, ele virou-se para trás, olhou Anamar e perguntou "Não vens?". E Anamar, num rasgo de insanidade, levantou-se, ajeitou os óculos de sol, alisou a saia aos folhos e decidiu ir. Quem sabe não encontraria por lá a outra metade dos seus sonhos.

Sem comentários:

Enviar um comentário